José Omsir Bertazzoni
Vivemos a tragicomédia do poder supremo, do interdito proibitório e das sanções penais aos piracicabanos que contestarem os vereadores na “Casa do Povo”. Do bate-papo do qual talvez sejamos privados, pela forma sórdida de se apresentar e aprovar um projeto punitivo, cerceativo e ameaçador, contrário à voz do povo, na calada da madrugada. Foi abortado, é verdade – por enquanto, se a sociedade não se movimentar –, mas isso com certeza voltará.
O mérito do saber democrático ficou por conta de um único vereador, Pedro Motoitiro Kawai, que, hostilizado por seus pares (?), pediu adiamento ao Projeto Legislativo 08/22, inconstitucional e antidemocrático, com outros mais que votaram favoráveis ao adiamento, alguns sobre a pressão de um certo vereador embebecido pelo poder.
As normas deste Projeto “Cale-se” são absurdamente inconstitucionais, senão vejamos:
Art. 1º — Fica criado mais um artigo na Resolução nº 16, de 19 de novembro de 1993, o 31-A, com a seguinte redação:
“Art. 31-A. O cidadão que cometer, no recinto interno ou externo da Câmara, o qual compreende a frente, as laterais, o calçamento ao entorno do prédio principal e do prédio anexo e o estacionamento, excesso, ameaça ou ofensa contra os Vereadores ou Servidores, devidamente comprovado, será reprimido, devendo a Mesa Diretora tomar as providências cabíveis, propondo todas as medidas que julgar necessárias aos interesses da Câmara, principalmente no que tange a segurança e bem-estar do público interno e externo, bem como, impugnar as que pareçam contrárias ao interesse público.
Parágrafo único. Quando o cidadão cometer, reiteradamente, excesso, ameaça ou ofensa contra os Vereadores ou Servidores, a Mesa Diretora analisará os fatos ocorridos e tomará as seguintes providências, conforme sua gravidade:
I – Advertência pessoal;
II – Advertência em Plenário;
III – Suspender o livre acesso do cidadão ao Plenário e às demais dependências da Câmara, sendo que, sua entrada deverá ser feita somente com autorização do Presidente da Mesa Diretora;
IV – Suspender o direito do cidadão, por prazo determinado, em utilizar a Tribuna Popular.”
Trata-se de penalidades inadmissíveis em nosso direito, cujos preceitos seguem o ordenamento jurídico das convenções internacionais de liberdade de expressão e das competências constitucionais para estabelecer pena, punição ou repressão. Pelo visto, por enquanto.
Foi crise ameaçada, evocada, esperada (para o reinício do recesso legislativo), mas que, no entanto, não chegou à sua finalidade de usar o Regimento Interno da Câmara de Vereadores para transformá-lo em um estatuto de “clube social”, onde se estabelecem punições aos sócios opositores das gestões “empoderadas”. Agora — não quero entrar nos méritos do último amarelado da versão anti-intelectual do projeto — vamos para o âmbito jurídico.
Avocando para si o direito de estabelecer penalidades, punições contra cidadãos que se desalinham aos pensamentos dos vereadores, em desrespeito às normas constitucionais da ampla defesa, do contraditório e da legitimidade absoluta garantida ao Poder Executivo ao estabelecimento de sanções penais em todos os âmbitos; vedados aos Municípios e Estados legislar sobre a matéria salvo nos termos que esclareceremos alhures.
Consoante ao ensinamento do professor Luiz Flávio Gomes, somente o Estado está autorizado a legislar sobre Direito Penal. Ele é o único titular do “ius puniendi”, logo, cabe a ele a produção material do Direito Penal Objetivo (ou seja, cabe ao Estado a criação das normas que compõem o ordenamento jurídico-penal).
Ressalte-se que a distribuição da competência legislativa vem descrita na Carta Política que, em seu art. 22, I, determina competir, privativamente, à União legislar sobre Direito Penal. Entretanto, a lei complementar federal pode autorizar os Estados-membros a legislarem sobre Direito Penal, contudo, somente em questões específicas de interesse local (§único, do art. 22 da CRFB/88).
Sublinhe-se: questões específicas,podendo ser algo como uma regra penal sobre trânsito em uma determinada localidade ou sobre meio ambiente em uma região. Logo, nenhum Estado está autorizado a legislar sobre temas fundamentais do Direito Penal (sobre princípio da legalidade, sobre as causas de exclusão da antijuridicidade, sobre a configuração do delito).
Tem-se o garantismo como um sistema que limita, entre o constrangimento e a evidência, tendo em vista quando o caso é submetido ao processo, com suas devidas etapas, investigação, acusação, defesa e decisão. Tem o objetivo de evitar juízos imediatos, realizados ainda no calor da emoção. (Lopes Junior, Aury).Portanto, a trajetória histórica sobre punição estatal ao descumprimento de normas remonta ao passado até chegar à ideia da Teoria do Garantismo.
“Garantismo” designa um modelo normativo de direito. Precisamente no que diz respeito ao direito penal, o modelo de “estrita legalidade”, próprio do Estado de Direito que, sob o plano epistemológico, caracteriza-se como um sistema cognitivo ou de poder mínimo e, sob o plano político, caracteriza-se como uma técnica de tutela idônea para minimizar a violência e maximizar a liberdade.
Outro significado trazido pelo professor italiano Luigi Ferrajoli, principal responsável pelo desenvolvimento da teoria do garantismo penal, reflete sob a ótica da teoria do direito e crítica ao direito, vejamos: “garantismo” designa uma teoria jurídica da “validade” e da “efetividade” como categorias distintas não só entre si, mas, também, pela “existência” ou “vigor” das normas. Neste sentido, a palavra garantismo exprime uma abordagem teórica que mantém separados o “ser” e o “dever ser” no direito; aliás, põe como questão teórica central a divergência existente, nos ordenamentos complexos, entre modelos normativos (tendentemente garantistas) e práticas operacionais (tendente antigarantistas), interpretando tal divergência como a antinomia – dentro de certos limites fisiológica e fora destes patológica – que subsiste entre a validade (e não efetividade) dos primeiros e a efetividade (e invalidade) das segundas.
“Garantismo” designa uma filosófica política que requer do direito e do Estado o ônus da justificação externa com base nos bens e nos interesses dos quais a tutela ou a garantia constituem a finalidade. Neste último sentido, o garantismo pressupõe a doutrina laica da separação entre direito e moral, entre validade e justiça, entre ponto de vista interno e ponto de vista externo na valoração do ordenamento, ou mesmo entre o “ser” e o “dever ser” do direito.
Na visão do professor Aury Lopes Jr. (Graduado em Direito pela Fundação Universidade Federal do Rio Grande, Especialista em Direito em e Doutor em Direito Processual Penal pela Universidad Complutense de Madrid): “Deve ser entendido o garantismo como um sistema que limita, entre o constrangimento e a evidência, tendo em vista que quando o caso é submetido ao processo, com suas devidas etapas, investigação, acusação, defesa e decisão. Tem o objetivo de evitar juízos imediatos, realizados ainda no calor da emoção”.
Mas não, Senhores Vereadores: não rasguem nossa Constituição. Se querem respeito, deem-se ao respeito e respeitem as visões diferentes; por mais impactantes que sejam, são vozes do povo e os Senhores são eleitos para representar esse povo. Por um senso de responsabilidade, vocês querem (por motivos de vaidades de poucos vereadores, três para dizer a verdade) trazer o “interdito proibitório legislativo para uma nova e absurda cultura jurídica do impossível”.
Respeito, Senhores integrantes da Mesa Diretora do Legislativo Piracicabano, trata-se de uma via de mão dupla, “conditio sine qua non”. Está mais que na hora do fisiologismo e da ideologização do absurdo serem expulsos desta Casa — em proteção ao Estado Democrático de Direito, que é nossa missão maior defender.
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José Omsir Bertazzoni, jornalista, advogado