Pergunte ao careca

Alexandre Bragion

Apesar de passados já pouco mais de vinte anos de inveterada calvície, ainda não me acostumei com a curiosidade quase obscena que algumas pessoas subitamente revelam pela terra nada plana da careca alheia. Pelas ruas, dentro das lojas ou entre as gôndolas dos supermercados, a reluzente ausência do tapete capilar desperta olhares, atrai interesses variados e – claro – suscita interrogações de toda espécie e com as quais jamais ousou sonhar a nossa vã filosofia (dominada, à exceção de Foucault, por criaturas quase sempre detentoras de penteados portentosos e soberbas barbas).

Pouca telha há duas décadas, confesso que sempre senti – no íntimo – que contrariava Sansão ao dar graças aos deuses e as deusas pelo fato de não ter de me preocupar diariamente com os aprestes necessários que as caprichosas cabeleiras exigem. Preguiçoso, desleixado e – literalmente – cabeça de vento que sempre fui, a calvície prematura me poupou esforços, reduziu gastos, diminuiu trabalho e descabelados vexames públicos. Mais do que isso, a careca me deu identidade, me distinguiu entre grupos e me fez ponto de referência (“tá vendo aquele careca, ali?”). E tudo iria bem no reino dos aeroportos de mosquitos não fosse pela insistência de algumas pessoas em saciar a curiosidade sobre o maravilhoso mundo dos desprovidos de cabelos.

Há algumas semanas, por exemplo, reencontrei casualmente um amigo que não via há tempos. Ele me cumprimentou e puxou conversa enquanto olhava meio hipnotizado para a minha cabeça. Então, de repente, não conseguindo mais segurar sua estupefação, soltou a mim sua pergunta (quase em tom de advertência): você está careca? (!) “Pois, é” – respondi. “Veja você… Se você não me fala eu seguiria a vida sem ter notado isso…” – complementei (enquanto, na verdade, eu também me via impressionado com a falta de memória dele. Afinal, nos conhecemos desde a juventude).

O rosário de questões de expressivo interesse feitas aos carecas é bem variado e, mesmo, diga-se, tem o seu “quê” de divertido. Uma vez, numa aula, uma aluna me perguntou se eu sou mesmo careca ou se “raspo” a cabeça. Não raro – especialmente quando estou sem barba – me perguntam se sou budista e se a calvície se justifica por conta de alguma opção religiosa (acho que o que conta aqui é a minha cara de Buda). Para além da clássica “você não sente frio na cabeça”, a “já pensou em fazer implante?” também é bastante utilizada no repertório do interesse popular pelo descalvado das calvas. Mas nada superou até hoje a doce curiosidade infantil de um pequeno que, estimulado pela mãe (que o incitava dizendo “pergunta para ele filho, pergunta para ele..”), me questionou à queima roupa com uma metafísica irrespondível: “por que o senhor é careca?”

A literatura não privilegia os carecas, vale dizer. Poucos são os autores ou personagens carecas que se tornaram célebres dentre tantos privilegiados capilarizados. Os quadrinhos e o cinema, no entanto, já são um pouquinho mais generosos com esse ser esquecido até mesmo pelo politicamente correto – e olha que eu tenho lugar de fala para afirmar isso. Para os mais velhos, a figura do detetive Kojak (interpretado por Telly Savalas) ainda é lembrada em gracejos senso-comum tão inteligentes como a piada do “é pavê ou pá cumê”. Lex Luthor, porém, tornou-se, talvez, o mais célebre dos vilões das HQs e das telonas, impulsionado que foi por sua expressão misteriosa ampliada pelo fato de ser ele desprovido de cobertura.

No Brasil, vale lembrar, dois ministros da justiça distinguem-se pelo destino que deram às suas calvícies e que estão – cada um a seu modo – dando ao país. Um deles, terrivelmente evangélico – no dizer de seu padrinho – fez caríssimo implante pouco antes de tomar posse na Corte. Outro, Lex Luthor às avessas, exibe brilhosa cabeça corajosa quem vem garantindo, ao menos até aqui, que a democracia se sustente e que eleições legais, democráticas e transparentes possam acontecer em breve.

Xará e parceiro de calvície, vem o ministro desagradando imensamente a direita e também parte da esquerda. Nas redes sociais, pasme-se, grupos bolsonaristas se solidarizaram agora com adversários do Partido da Causa Operária por entenderem terem sido ambos, na visão deles, vitimados pelas decisões do ministro – que, dentre outras pendengas, combate as “fake news” e ataques gerais à democracia (valendo lembrar, em analogia, que o Lex Luthor do cinema e das tirinhas também se chamava, como o ministro e eu, Alexandre – ou Alexander).

De um careca para outro – e sem perder o tema falso desta crônica – perguntaria eu ao ministro, careca da vez: “que país é este?” Entre lobos e cordeiros eventualmente irmanados, se vamos resistir ao tempo que vivemos é outra pergunta que diariamente nos passa pela cabeça. Não é? Entre falsas cabeleiras, notícias mentirosas e ameaças explícitas a nos deixarem (metaforicamente, no meu caso) de cabelos em pé, sigo confiante – talvez por solidariedade – apostando que desta vez (queira o universo) um careca possa fazer a diferença.

 

Alexandre Bragion, cronista desta Tribuna desde 2017 e careca desde o século passado.

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