O porvir das delegações extrajudiciais

José Renato Nalini

 

Reitero o mantra de que me sirvo há várias décadas: a mais inteligente e exitosa estratégia do constituinte de 1988 foi a redação conferida ao artigo 236 da Constituição da República.

O Estado delegou a particulares funções essencialmente estatais. Não a qualquer particular, mas a alguém recrutado por um severo concurso realizado pelo Poder Judiciário, que mantém depois a fiscalização, a orientação e o controle dos serviços. Estes são desempenhados sob inspiração da iniciativa privada, ou seja, com desenvoltura de que a administração pública direta não dispõe.

Mais ainda: o Estado não investe um centavo nesses serviços nitidamente públicos, remunerados que são pelo destinatário. Ao contrário, carreia para o Erário ponderável parcela dos emolumentos.

Solução genial. Fora também adotada para a educação, transformaria, para melhor, o panorama deficitário da escola brasileira.

As delegações extrajudiciais não podem ser comparadas a entidades que atuam sob a exclusiva égide do interesse privado. Não são intercambiáveis com empresas comerciais de prestação de serviços. Elas são detentoras da fé pública, uma expressão concreta da soberania estatal. Alguém que registrou o seu título dominial no Registro de Imóveis, tem por si todo o instrumental edificado há milênios para garantir a ambicionada segurança jurídica. Para perder a fruição desse direito fundamental de primeiríssima dimensão – a propriedade – precisaria ocorrer a impensável eliminação do aparato estatal. Desapareceria o Estado, surgiria primeiro a anarquia, no seu sentido mais vulgar, e em seguida o caos.

Todavia, a benfazeja solução constitucional não tem sido inteiramente utilizada pela população, pois tímido o aproveitamento das potencialidades nela contidas. É preciso um redirecionamento do CNJ e maior protagonismo do Parlamento.

Nada mais judicial do que a instituição extrajudicial prevista no artigo 236 do pacto federativo. Ao tempo em que os antigos cartórios eram também responsáveis pelos serviços judiciais, a qualidade era inigualável. Nesse ponto, questiona-se o acerto da generalizada estatização. Quais os efetivos ganhos, para a população, destinatária desses serviços, de inflacionar a já pesada e dispendiosa estrutura estatal do sistema Justiça?

Muitas das atribuições do Poder Judiciário ainda podem ser transferidas para as delegações extrajudiciais, ampliando o rol de seus préstimos, cuja eficiência é reconhecida e comprovada.

Penso, por exemplo, nas execuções fiscais, percentual imenso do trabalho cometido à combalida estrutura judicial, assoberbado com a pletora de CDAs – Certidões de Dívida Ativa arremessadas, a cada final de ano, a todo o sistema Justiça, pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais e Municipais.

Como se sabe, na tentativa de se liberar de eventuais consequências de uma drástica lei de improbidade, os gestores públicos transferem a tarefa de cobrar dívidas fiscais ao Judiciário. Nem sempre há correta identificação do devedor ou de seu endereço. Essa inócua busca recai sobre os gabinetes judiciais. Sabe-se que o retorno da cobrança da dívida ativa no Judiciário é pífio. Mais ainda, o Judiciário não pode ser convertido em cobrador de dívidas. É uma forma de fazê-lo falhar na missão precípua: solucionar conflitos.

Por que a cobrança executiva do IPTU não pode ser transferida para os Registros de Imóveis? É evidente a familiaridade do tema com aquilo que essas delegações realizam.

No momento em que o Brasil precisa alavancar sua economia, seriamente comprometida pelo combo de crises que recaiu sobre a nacionalidade, é preciso fazer com que as delegações extrajudiciais incrementem a atividade negocial. Há um precioso patrimônio imobiliário ocioso, quando não se permite alienações judiciárias ou hipotecas simultâneas, a recaírem sobre o mesmo imóvel, até exaurimento de seu real valor.

Pense-se no que representaria para a vida negocial, para o dinâmico trânsito creditício, a obtenção de vários financiamentos, em lugar de um só, quando um edifício de cem milhões de reais garante apenas uma dívida de vinte milhões, deixando oitenta milhões sem qualquer proveito para a economia nacional.

Pense-se no pequeno proprietário, possuidor de uma casinha de 50 mil reais, que poderia financiar um curso para o neto, ou fazer uma viagem, ou realizar uma reforma em sua residência, se pudesse acumular garantias simultâneas. O que falta para o Brasil perceber o quão obtusa é a inflexibilidade hermenêutica de certos setores rançosos? Voltarei ao tema.

O Registro de Imóveis pode se desincumbir a contento, em menos tempo e com eficiência incomparável à Justiça comum, as questões de adjudicação compulsória, execução hipotecária e a execução de dívidas propter rem. É de sua essência saber trabalhar com essa realidade que aflige milhões de brasileiros.

O RI é um acervo informacional de excelente qualidade. Pode e deve servir para o planejamento de todas as políticas públicas. Detém o acervo das áreas urbanizáveis, da cobertura vegetal a cada dia mais importante na era em que o aquecimento global causador das mudanças climáticas é o maior risco já imposto sobre a humanidade.

Um ponto que merece reflexão e, mais do que isso, ação concreta, é encarar a Regularização Fundiária, política estatal que ainda carece de incremento. Não é apenas uma questão registral, mas um tema com repercussão econômica e cívica. O território informal da propriedade é um outro tesouro inexplorado. No momento em que o ocupante de um pequeno lote, considerado às vezes invasor, ou usuário clandestino de uma terra que não é sua, obtém o título dominial, ele vai movimentar a economia local. Vai obter financiamento para uma edificação, para uma reforma, para valorizar aquilo que agora pode dizer que é seu.

Mais ainda: passará da precariedade para a regularidade formal registraria. Cresce em cidadania. Tem um upgrade no seu status civitatis. Quase sempre é um adquirente humilde e cumpridor de suas obrigações, pois pagou religiosamente suas prestações, que não consegue registro de sua posse. Esse revigoramento ético da condição cidadã é um subproduto muito importante da regularização fundiária.

O Parlamento tem todas as condições para fazer com que isso aconteça. Atendendo à reivindicação da sociedade para que as delegações extrajudiciais assumam todas as atribuições hoje cometidas ao Judiciário e que podem ser desempenhadas com eficiência maior pelos delegatários. Basta observar o que as entidades de classe promoveram em termos de modernização e assimilação proficiente das modernas tecnologias disponíveis. A desenvoltura com que atuam, sem as amarras da administração pública direta, propiciou esse evidente salto qualitativo.

O RI conseguiu melhorar a performance brasileira no doing business do Banco Mundial, que enxergava catorze procedimentos antecedentes ao efetivo registro predial. Requisitos que não guardam pertinência com o ato registral, mas representam a tendência estatal de sobrecarregar parceiros com tarefas anômalas. Cujo custo social recai sobre inocentes.

Também reconhecer as delegações como as principais parceiras do movimento de pacificação e harmonização de uma sociedade complexa e polarizada, pois além de resolver rápida e eficientemente uma questão, poupam ao interessado o calvário de percorrer as quatro instâncias do Judiciário e se submeter à imprevisibilidade de uma decisão que pode suportar dezenas de reapreciações, diante de um sistema recursal caótico.

Mais ainda: a transferência de atribuições ao extrajudicial poupa o Erário de criar mais Tribunais, mais cargos, mais funções, mais estruturas materiais, mais equipamentos. A tendência ao crescimento vegetativo do Poder Judiciário é inversamente proporcional à sua eficiência. O Parlamento sabe disso.

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José Renato Nalini, reitor da Uniregistral, docente da Pós-graduação da Uninove, presidente da Academia Paulista de Letras (APL); foi presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

 

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