Censo artesanal ou digital?

José Renato Nalini

 

Já se escreveu bastante sobre a impossibilidade de realização do Censo Demográfico, previsto para 2020 e inviabilizado em virtude da pandemia. Não é preciso acrescentar muito para lamentar que não se possa aferir, com a possível exatidão, quantos somos, quais somos, como somos. Entre outras inúmeras questões suscetíveis de figuração num recenseamento.

Os dados resultantes do censo definirão os recursos destinados aos 5.570 municípios brasileiros. Extremamente importante obter exatidão nesse levantamento. Mas já critiquei a fórmula ainda utilizada para fazê-lo. O método é artesanal: são necessários duzentos mil indivíduos para a realização do trabalho de campo. Visita de casa a casa, cerca de setenta milhões de domicílios e preenchimento de questionários, depois formatados e seus resultados analisados.

O prejuízo maior para a falta de censo recai sobre os pequenos municípios. Cerca de 90% das cidades do Brasil têm menos de 50 mil habitantes. Mas todas elas dispõem de um serviço estatal muito discreto, mas muito eficiente: o Registro Civil das Pessoas Naturais.

É a delegação extrajudicial mais presente em todos os locais. Há lugarejos, chamados distritos, que não contam com uma delegacia de polícia, uma agência de correio, um policial militar sequer. Nem se fale em delegado ou promotor e juiz. Mas ali funciona – e atende a todas as pessoas – o registrador civil das pessoas naturais.

Cuida-se da única presença do Estado naquele lugar. Resolve questões não apenas jurídicas, mas sociais, psicológicas, econômicas, etc. Esse protagonista essencial se encarrega dos assentos de nascimento, casamento e óbito dos brasileiros. Ele tem um acervo de valia inestimável para o planejamento das políticas públicas do âmbito territorial em que atua. Programar campanhas de vacinação, de matrícula em creche ou pré-escola ou em qualquer unidade educacional, fica significativamente mais fácil a partir dos dados amealhados no Registro Civil das Pessoas Naturais.

Embora se resista a uma coleta de informações por via remota, é inegável que o planeta inteiro está imerso na era digital, uma das consequências da Quarta Revolução Industrial. A pandemia acelerou o uso das redes sociais, houve um incremento na capacitação de pessoas e foi um orgulho constatar a desenvoltura com que uma legião de brasileiros se familiarizou com essas novíssimas tecnologias.

O Brasil dispõe de mais de trezentos milhões de mobiles, o que significa a posse de mais de um – ou de vários – por pessoa. Se o celular serve para fazer pagamentos, para transferência de quantias, para aquisição de bens, por que não para realizar as entrevistas do censo?

O smartfone tem sido utilizado para as eleições em países informatizados como a Estônia, para colher opiniões sobre o conteúdo da Constituição da Finlândia, para motivar pessoas e mudar a face da política em todo o globo, por que não recorrer a ele para um censo compatível com esta era?

Parece não ter havido mudança no recenseamento, desde a época em que Jesus veio ao mundo. Narram os Evangelhos que Maria e José tiveram de ir a Belém para fazerem a sua “prova de vida”. Hoje, o mundo web dá conta dessas questões que antes demandavam locomoção física, deslocamento com inegável perda de tempo, sem vantagem que justifique o dispêndio de dinheiro e de energia.

Se o IBGE se debruçar sobre a capilaridade do Registro Civil das Pessoas Naturais e se aproximar das entidades de classe da categoria, qual a ARPEN, terá uma outra ideia sobre a potencialidade de um trabalho conjunto. Afinal, foi o Registro Civil que permitiu o controle do número de contaminações, óbitos, vacinação e demais informações necessárias ao combate à praga que nos assola.

As delegações extrajudiciais precisam ser mais conhecidas e mais prestigiadas pelo Estado, que para elas delegou uma função essencial, da qual elas dão perfeita conta. Sem que o Estado invista um centavo na serventia. Graças à inteligente estratégia do constituinte de 1988, elas funcionam à luz da inspiração de uma empresa, como iniciativa privada. Foi isso que permitiu se adequassem aos tempos, mergulhassem na Quarta Revolução Industrial e se tornassem tão eficientes que hoje são estudadas pelo restante do planeta, interessado em adotar idêntica fórmula.

Um censo digital é perfeitamente possível. Já passou o tempo do censo artesanal, cujos óbices superam – e muito – seus benefícios.

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José Renato Nalini, reitor da Uniregistral, docente da Pós-graduação da Uninove, presidente da Academia Paulista de Letras (APL); foi presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

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