Noedi Monteiro
Primeiros, os de casa. Primeiros, os seus. Primeiros, os nossos. Primeiro, a gente. Primeiro a lição do berço aos de reconhecida procedência e origem. Não há como querer mostrar a nossa casa, as nossas coisas, a nossa gente, se nós mesmos, e próximos, não nos reconhecermos.
Apesar de ser da nossa gente com traços, sangue e cultura; muitos parecem alheios à sua condição etnicorracial. Sem laços, sem lastros. Sem conformidade e confluência.
Não podemos romper a relação mais selada, celebrizada e ajustada pelos Entes da África: a pertença. Sujeito à família etnicorracial e cultural pela procedência, complemento, anexo, propriedade, inerência.
Está bem que viemos de lugares diferentes do continente africano, conduzidos com rigor, pelo condenável tráfico humano. Que passamos, por capturas, postos de coletas, pontos de partidas, fortificações, portos, tumbeiros, valongos, quarentenas, mãos, donos, marcações a ferro em brasas (ferrete), matrículas em coletorias, escrituras de vendas e compras em cartórios para controle e propriedade. Pelourinhos. Senzalas. Fugas. Quilombos. Estradas. Pumbo (feira de escravos). Zungus (nzungu) barulho! Lá vêm eles! Em que pese sujeitos, a um rigoroso ordenamento jurídico escravocrata.
Todavia, estamos no mesmo barco. Sejamos axantis, fantis, fulas, mandingas, ibôs, ewe-fons, jejes, minas, hauçás, tapas, nagôs, congos, monjolos, quiloas, bacongos, ambundos, quimbundos, benguelas, ovambos, moçambiques, cabinas, angolas, bornus! A representar iorubás ou bantus. Da junção das várias sociedades africanas distribuídas no contexto nacional origina-se a “gente negra brasileira”. Postos: afrodescendência, afro-brasilidade.
O Atlântico nos acalentou no ventre daqueles que são a razão de estarmos aqui. Que nunca pensaram em abortar-nos, apesar, da horrenda senda que lhes aguardava do outro lado do traslado. Nem pensaram lançar-nos ao mar por enxergarem, além de seu tempo, que ainda, os frutos de seus ventres, tomariam os remos e o leme, a assumir, definitivamente, o rumo da viagem.
Protegeram-nos com seus corpos desnudos, marcados, feridos, cansados, quais as aves seus rebentos nos ninhos, para que nunca descêssemos aos porões infestados de banzo, dengue (medicina) e fétidos.
Somos os sonhos deles consignados sob tremendos pesadelos e dor contínua. Portanto, se não nos absorvermos um aos outros agora perderemos de vez, a oportunidade de chegar àquilo que é nosso há milhares de anos: kanaombo, do quimbundo, “Coisas de Negros”. Ou mesmo que “negrice” termo poético cunhado por Lima Barreto (1881-1922) para o universo da gente negra brasileira.
Se não fizermos o dever de casa, teremos perdido a noção por completo, do que se nos espera, há séculos. Senão, jamais aprenderemos a ressignificar aquilo que nos é mais caro: o porquê de estarmos aqui. Como perderá sentido, efeito e dimensão, a fastidiosa travessia do Atlântico, por aqueles, que nos amaram primeiro, antes deles mesmos.
Estar com os remos e o leme, mas sem o grupo ou conjunto todo, é andar em círculo. Estar à deriva. É singrar o mar de nossa história, memória e tradições a deixar para trás a África e o Brasil.
Será o mais difícil, longo, e definitivo oceano a atravessar. Talvez, o último trecho a percorrer a chegar nosso Universo. Que não se configura num Horizonte Perdido (Sangri-la); numa Terra Prometida; ou nas enigmáticas Lemúria e Atlântida (cunhadas por Platão) de outrora. É a proeminência vocativa dos escolhidos (cabeças de chave) a caber-lhes à retomada da primazia das coisas como antes, justificadas pela procedência e identidade histórica do Berço da Humanidade, a África de todos os tempos em que pese à diáspora e a Partilha.
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Noedi Monteiro, professor aposentado, mestre em educação, ativista afro, historiador, membro do IHGP