Vacinas bem público ou privado? Como regular internacionalmente?

Danielle Mendes Thame Denny

 

Em termos econômicos, os bens podem ser privados, públicos, em clube/monopólio natural ou de uso comum. Os privados são excludentes e rivais, somente quem é dono de um bem pode usá-lo ou autorizar o uso por outros, e uma pessoa sendo dona impede que as demais o sejam. Os bens públicos são exatamente o oposto, o fato de estarem disponíveis beneficia a todos e o uso por um indivíduo não impede o uso por outros. Em um clube ou em monopólio natural, a disponibilidade do serviço beneficia a todos, mas é bem fácil identificar o usuário que tem que pagar pelo uso. Contudo, os bens comuns apresentam um desafio maior, são finitos, ou seja, o uso por um pode inviabilizar o uso pelos demais, porém a titularidade é difusa para toda a sociedade, portanto é muito difícil precisar quem é o usuário que deve pagar por ele, ou que tem a responsabilidade por cuidar, por exemplo.


E no caso das vacinas, como isso funciona?

Depende da situação. Uma vacina que exista em abundância, seja eletiva e que a pessoa queira tomar em uma clínica privada para aumentar a sua imunidade é um bem privado, similar a um pote de vitaminas que pode ser comprado nas farmácias. No caso das vacinas infantis, oferecidas gratuitamente, nos postos de saúde, sem as quais as crianças não podem ser matriculadas nas escolas, trata-se de um bem público, quanto maior o número de crianças imunizadas, tanto melhor será para a coletividade e a proteção de uma não impede a das demais. Porém, no caso da pandemia atual da Covid-19, ainda não existe vacina em abundância, a ponto de tornar necessário a definição e adoção de critérios para selecionar grupos prioritários. Portanto, apenas alguns grupos tomam a vacina, enquanto outros terão que esperar por um período maior para serem imunizados (rivalidade). Porém, os benefícios para a coletividade continuam indo muito além dos ganhos individuais que o vacinado recebe por ter sido imunizado (não exclusividade). Típica tragédia dos comuns, como definiu Hardin[2].

Na verdade, como divulga a Organização Mundial da Saúde: ninguém estará a salvo enquanto todos não estiverem vacinados [3]. Sendo assim, era de se esperar um esforço bem mais robusto de imunização em massa. Porém, o que tem acontecido é uma disputa entre os países para imunizar as suas populações, refletindo o seu nível de desenvolvimento. Como consequência, apenas 10 países administraram 75% de todas as vacinas contra a Covid-19 e mais de 130 nações ainda não receberam uma única dose [4]. Trata-se de uma falha de mercado, um custo social, uma externalidade negativa que não está sendo incutida nos preços nem nos cálculos de rentabilidade. Portanto, torna-se necessário estabelecer alguma regulação para corrigir isso, caso contrário o resultado será contrário aos interesses da sociedade.

No âmbito internacional, entretanto, regular algo é muito mais complexo que dentro de um país em que o governo tem autonomia para legislar, implementar e punir. Não existe um poder soberano internacional, nem as organizações internacionais –  que são basicamente um conjunto de Estados -, via de regra têm poderes para coagir os estados nacionais a tomar quaisquer medidas, ainda que de interesse global.  Assim, a soberania nacional é praticamente absoluta.

Outro problema são os direitos de propriedade relativos à área da saúde pública. O investimento em medicamentos é financiado pelo direito à exclusividade. A maioria das nações reconhece algum período de monopólio para a farmacêutica que tenha criado algo novo ou algum melhoramento e tenha levado isso a registro no sistema de proteção de propriedade industrial deste país. Por meio do sistema de patentes, a sociedade abre mão de preços menores que seriam cobrados por mais competidores, porque entende que o inovador merece o prêmio de ser o exclusivo fornecedor por um tempo determinado, para que possa se ressarcir dos custos que incorreu para desenvolver a nova droga e pelo esforço científico que foi necessário.

Por esse modelo, os laboratórios são incentivados a investigar terapias que vendam mais e para quem tenha mais poder aquisitivo. Doenças comuns em países subdesenvolvidos consequentemente têm sido negligenciadas. Há muito este tem sido um desafio para a comunidade global.

O TRIPS[5], acordo internacional sobre propriedade intelectual, no âmbito da Organização Mundial do Comércio, tem um dispositivo que permite a quebra da patente em casos de emergência nacional. Essa cláusula chegou a ser usada pelo Brasil na época que o professor Serra era ministro da saúde, para autorizar os laboratórios nacionais a fabricarem os remédios retrovirais usados para o tratamento da Aids. Na verdade, não houve uma efetiva quebra da patente, pois os laboratórios entraram em acordo, ofertando o remédio a um preço reduzido para o Sistema de Saúde brasileiro.

No contexto atual, alguns países já cogitaram quebrar patentes e alguns laboratórios declararam que vão abrir mão do direito de executar seus direitos de exclusividade, como é o caso do laboratório Moderna[6].

Contudo, existe aí uma pegadinha. Atualmente, as patentes têm sido registradas de forma que, mesmo se forem quebradas ou colocadas voluntariamente em domínio público, ainda assim não seria possível que as indústrias concorrentes produzissem as vacinas, porque o método de elaboração, as metodologias de testes e os dados de análise são protegidos indefinidamente como segredo industrial. Trata-se de uma blindagem jurídica das farmacêuticas que vem sendo possível.

Alternativas várias ao sistema de patentes vêm sendo propostas. Uma das mais promissoras é a do Fundo de Impacto na Saúde[7] que prevê o aporte por países e empresas para custear o desenvolvimento de medicamentos que sejam remunerados pelos recursos do fundo de acordo com a efetividade conseguida para melhorar a saúde da população. O laboratório, vendo que não seria comercialmente viável produzir um determinado medicamento no sistema de patentes, pode optar por produzi-lo nesse sistema paralelo de remuneração por resultados e pelo fundo, independentemente do custo cobrado do consumidor, que pode, portanto, ser bem baixo.

COVAX e/ou C-TAP? – Outras iniciativas mais recentes são a COVAX e o C-TAP. A COVAX é uma coordenação entre os países para acelerar o desenvolvimento, produção e distribuição de vacinas, testes, remédios e materiais. Lançada no início da pandemia, a COVAX é financiada por países que fazem contribuições segundo sua capacidade e por doadores privados, chegando em torno de US$ 2 bilhões. O Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), em colaboração com a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) faz a distribuição.

Cerca de 92 países de baixa e média rendas estão adquirindo vacinas com o apoio da COVAX e vacinando gratuitamente, a princípio, pelo menos 20% de sua população. Cerca de 80 economias de alta renda anunciaram que financiarão as vacinas com seus próprios orçamentos, independentemente da contribuição que fizeram para a COVAX [8]. Sobrando mais recursos para os países pobres, portanto.

Já o C-TAP é um conjunto de empresas que voluntariamente abriram mão de suas patentes para incentivar o esforço coletivo de combate à pandemia. Essa colaboração para que ninguém seja dono das vacinas pode evitar a escassez e também contribuir para melhor adaptação e maior capacidade de produção. Apesar dos motivos nobres, a iniciativa está praticamente vazia. Apenas 41 países apoiam oficialmente o C-TAP em palavras, mas poucos em ação[9]. Essa ausência dificulta a implementação da COVAX que precisa do sucesso do C-TAP para poder comprar vacinas acessíveis em grande escala. Enfim os desafios são hercúleos, mas esperar que os laboratórios ajam como se fossem entidades de caridade, infelizmente não é efetivo.

 

[2] HARDIN, Garrett, The Tragedy of the Commons, Science, v. 162, n. 3859, p. 1243–1248, 1968.

[3] GAVI, Why is no one safe until everyone is safe during a pandemic?, disponível em: <https://www.gavi.org/vaccineswork/why-no-one-safe-until-everyone-safe-during-pandemic>. acesso em: 27 abr. 2021.

[4] Vacinas Covid-19: Guterres pede solidariedade perante avanço “extremamente desigual e injusto”, ONU News, disponível em: <https://news.un.org/pt/story/2021/02/1741802>. acesso em: 27 abr. 2021.

[5] WTO, World Trade Organization, WTO | intellectual property (TRIPS) – agreement text, disponível em: <https://www.wto.org/english/docs_e/legal_e/31bis_trips_01_e.htm>. acesso em: 2 ago. 2019.

[6] ZAITCHIK, Alexander, Moderna’s Pledge Not to Enforce the Patents on Their COVID-19 Vaccine Is Worthless, disponível em: <https://jacobinmag.com/2021/04/moderna-patents-covid-19-vaccine>. acesso em: 27 abr. 2021.

[7] HIF, Home Page; POGGE, Thomas, The Health Impact Fund: Better Pharmaceutical Innovations at Much Lower Prices, Rochester, NY: Social Science Research Network, 2009; HOLLIS, Aidan; POGGE, Thomas, The Health Impact Fund. Making New Medicines Accessible for All. A Report of Incentives for Global Health, [s.l.]: Health Impact Fund, 2015.

[8] Entenda o que é a COVAX, parceria da OMS para distribuição equitativa de vacinas contra a COVID-19 | As Nações Unidas no Brasil, disponível em: <https://brasil.un.org/pt-br/114711-entenda-o-que-e-covax-parceria-da-oms-para-distribuicao-equitativa-de-vacinas-contra-covid>. acesso em: 27 abr. 2021.

[9] HOEN, Ellen ’t, The elephant in the room at the WHO Executive Board.

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Danielle Mendes Thame Denny, Pesquisadora no Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (CEPEA) de Piracicaba, São Paulo

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