Camilo Irineu Quartarollo
Os padres reclamavam que os carnavalescos católicos vinham da folia para tomar as cinzas.
Esperava minha vez na fila de pecadores, a voz cavernosa do padre sentenciava “és pó e em pó hás de tornar” e ia cruzando e sujando a testa da gente. Bastava um espanador, um sopro para me varrer da existência, mas eu nem tinha pulado o carnaval. Virei o rosto e tomei na têmpora, se fosse vacina da covid servia mesmo assim.
Por certo, todas as vaidades vão para o cadinho, a beleza, os títulos, a posição social, tudo, e esta cinza fica impregnada do que realmente éramos. Seguem os viventes nesse ritual carnavalesco, cujos corpos, além de templos também são parques cheios de vida e diversões, descortinando os mistérios da existência e abrindo-se ao ar da esperança.
A festa e o luto são celebrações contíguas. Na quaresma, os penitentes deixam a barba por crescer, outros evitam algum prazer cotidiano por quarenta dias, eu nada faço, pois os meus são muito limitados nessa covid e “quaresma de confinado”.
O padre falava de um tal fariseu, como bode expiatório. Fariseu virou sinônimo de fingido, hipócrita no jargão do púlpito. Todos os que não concordam com os conceitos estabelecidos são caracterizados como tais, fariseus. Ora, eu também já caí nessa esparrela da imagem, confesso. Se lêssemos sem os óculos do pré-estabelecido iríamos descobrir que aqueles fariseus com quem Jesus falava são pessoas as quais ele conhecia bem, cara a cara. Curiosamente, apesar dessa malhação, os fariseus foram os cristãos de primeira hora, os discípulos ocultos do cristianismo, como Nicodemos, José de Arimateia e muitos outros convertidos.
Neste ano o diálogo é tema da Campanha da Fraternidade. Dialogar não é convencer, necessariamente. É partilhar pontos de vista onde nenhum mortal pode fugir à razão ou se eximir das cinzas de quarta-feira, tomando-as ou não. Podemos não partilhar as mesmas ideias, gostos, religião, mas a vida acaba nos pondo em cena daquilo que se tem para hoje. Por que não dialogar?
Contudo, não dá para dialogar com alguém obcecado por uma ideia pré-concebida. A obsessão pune nos outros o que tememos em nós. A defesa da autoimagem ou imagem de mundo relega pessoas a estereótipos sociais como gay, trans, negro, baixo, gordo, retardado, comunista, petista e outros, mas o diálogo se impõe como forma sadia da convivência humana. Geralmente, o preconceituoso pertence a um grupo social definido ou tem poder econômico, ou ambos.
Na Antiguidade, sofriam preconceitos os órfãos, as viúvas, os pobres, os estrangeiros, tanto que estão presentes na proteção da Lei de Hamurabi e do Levítico. Atualmente, muitos grupos desapercebidos ganharam foco e saem das cinzas, como os LGBTQIA+, negros, indígenas, judeus, palestinos, hindus, muçulmanos e outros. Então dialogue com seu ser festivo, conviva com os defeitos dos outros que eles esquecem dos seus e tome cinza, ou não. Viva!
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Camilo Irineu Quartarollo, escrevente judiciário, escritor independente, autor do livro A ressurreição de Abayomi, dentre outros