Uns dias no Paraíso

Camilo Irineu Quartarollo

 

De forma assexuada o homem fora moldado em argila por duas enormes mãos, cujo dedo está no Rio de Janeiro, não em Brasília. Posto num jardim onde não havia mandrágoras nem macacos fazendo folia, somente aves canoras e animaizinhos mansos, exceto a serpente que subia em árvores.

Nesse jardim de delícias o ser humano transgressor pela fraqueza de sua fêmea e murmúrio de uma cobrinha “maledeta” e, pasmem, por uma dentada numa fruta que compramos na feira.

O criador lançou três castigos. À serpente fofoqueira que rasteje. À mulher oferecida que ao homem se submeta. Pode-se pensar que se uma rasteja a outra é submissa, amenizando à segunda pela cantilena de que fora feita da costela do homem. Isso para dizer que a mulher teria de ser companheira, “próxima” do coração do homem. Acho que não convence muito esse companheirismo intercostal, porque a recíproca nem sempre verdadeira. O terceiro castigo é o de que o homem ganharia a vida com o suor do rosto dele. Suor dele? A mulher não exala seus odores como seu macho faz, como se não transpirasse ou trabalhasse! O asseio feminino ou o leve perfume de sua pele são discretos, quando ama, amamenta, corre ou chora. A mulher é elegante e asseada, e sutil. O criador por tabela enalteceu sua coparticipante da criação, com suas sutilezas e exuberâncias. O maior castigo do macho não é o suor do rosto, é a impotência diante da força feminina.

Após os castigos de rastejar, submeter, suar o pão diário, tem o mandamento expresso do “crescer, multiplicar e dominar a terra”. Creio que isso foi depois do sétimo dia de criação, mas os estudiosos dizem que os dias para Deus são contados de eternidades em eternidades, ou seja, esse jardim ainda está produzindo.

A narrativa da criação parece o relato de uma emancipação forçada. A serpente contraria o capricho divino com sua massa de modelar e faz os humanos errarem nus e famintos pela vida com folhas de videira tapa-sexo, quando não havia tecelões e a Inglaterra não importava algodão americano. Alusões bíblicas proclamam o “crescei e multiplicai-vos” para o casal transgressor, mas chamam as partes íntimas de vergonhas – de quê?

Expulsos do paraíso, sobrou a ordem divina de dominar a terra pela proliferação da espécie, estabelecendo um primado humano. A preservação dos seres vivos. Contudo, essa ordem prevê a preservação em outros campos – a da civilidade. Já no código de Hamurabi e mandamentos bíblicos os desfavorecidos ganham figuras como a do órfão, da viúva, do pobre e do estrangeiro. O profetismo vai trazer esses invisíveis sociais como símbolos e presença divina no meio das gentes.

Pois bem, o jardim é o mundo onde aparamos a grama, replantamos, semeamos, nos relacionamos, enfrentamos selvagerias e murmúrios de serpentes, suando muito. Tudo por nossa conta. Então, quer ser jardineiro ou jardineira? Eletricista já tem.

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Camilo Irineu Quartarollo, escrevente, escritor, autor de A ressurreição de Abayomi, dentre outros

 

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